23 de Dezembro de 1976

"A minha mãe chamou-nos aos três. A mim a única filha, e seus dois filhos rapazes. Eu com 10 anos e meus irmãos Francisco, com 6 e Manel com 8 anos. Fomos ter com ela ao corredor de casa. Disse-nos com ar sério: "Cada um de vocês vais pôr dentro da sacola da escola três brinquedos e mais nada, está bem? Depressa, vá lá, depressa."
Olhámos uns para os outros sem perceber. Mas a voz e o ar com que a minha mãe disse aquilo, nem fez com que o Manel perguntasse nada. Fomos correndo para os nossos quartos fazer o que a minha mãe tinha dito. Eu guardei o Alexandre, um urso amarelo já muito gasto, uma boneca, a Maria, que era prenda mais ou menos nova, e a caminha da Maria.
Ouvi a minha mãe a chamar-nos novamente do corredor. Corri. Não sei o que os meus irmão guardaram, porque também apareceram no mesmo instante. A minha mãe tinha só a mala castanha que costumava usar, e a pasta da escola, onde guardava os livros e os trabalhos dos meninos dela. O meu pai não estava em casa ainda. Não era hora de chegar da Robialac, onde trabalhava.
"Vamos embora meninos", disse ela.
"Para onde mamã?", perguntei eu.
"Vamos ter com a avó Isabel"
A avó Isabel vive na metrópole. Não vive aqui, em Maputo. Vive em Lisboa.
Saímos de casa.
O meu pai, afinal, estava dentro do carro à porta de casa. Se calhar tinham feito as malas sem darmos por nada. Íamos de férias e era uma surpresa.
O meu pai conduziu até ao aeroporto. Estacionou o carro e saímos. Afinal não havia mais bagagem...
O aeroporto estava cheio de gente, que se empurrava e acotovelava. A minha mãe e o meu pai, agarravam-nos para não nos perdermos. O calor era imenso...os vidros estavam embaciados...todos escorriam suor...e o cheiro entranhava-se nas narinas, na roupa, nos cabelos...
O meu pai, um pouco mais à frente a segurar com mão firme o Francisco e o Manel, empurrava a multidão. A minha mãe, de mão dada comigo, seguia-o.
Finalmente, o meu pai conseguiu chegar ao balcão onde uma senhora gritava e gesticulava. Muita gente gritava e gesticulava com a senhora.
O meu pai mostrou bilhetes e documentos. Dois militares da Frelimo aproximaram-se. Leram demoradamente os documentos. Olharam muito para nós. Ao fim do que pareceram horas, rodeados de gente que empurrava, gritava e gesticulava, um deles disse ao meu pai: "Podes passar camarada, mais a tua família. Mas se vais, já não voltas e já sabes que não podes levar nada. Agora os teus bens são do partido." O meu pai acenou com a cabeça.
"Passem", disse o militar.
Passámos de mão dada e andar apressado. Mais à frente, voltámos a mostrar os papéis todos.
Finalmente entrámos no avião. Não havia lugares para ficarmos juntos. A minha mãe distribuiu-nos pelos lugares ainda vagos.
Pouco tempo depois levantávamos voo para casa da avó Isabel.
Afinal, não íamos de férias...

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