8 de Novembro de 1977

“O “bichanar” interrompe o pontual silêncio. Os olhares cruzam-se desconfiados ou surpresos. Uma aula de prova escrita. Quando alguém pergunta alguma coisa em voz alta, alastra o à vontade do “bichanar” uns quantos decibéis mais elevados. Para a seguir se dissipar contra a barreira do olhar reprovador, em muro de óculos na ponta do nariz, que vou de lábios crispados, ostentando…Uma aula de prova normal. O frio instalou-se na sala de paredes grossas e húmidas. Os meus pés estão gelados, mesmo com dois pares de meias, de lã. Penso no que vou ter que ler depois…Ai…e de preferência entregar já amanhã. Como um penso numa ferida, arrancar depressa antes que doa mais.
Devia estar a estudar. Devia estar a ler em francês. Sim, sei ler em francês, inglês, castelhano e italiano. Quanta cultura para uma só rapariga da província! Uma verdadeira poliglota…(às vezes também troglodita…acontece... a confiar em Darwin…)
Leio e sublinho. Leio palavras que se soltam do esforço de atenção e vão soando no silêncio, sem sentido, deslocando-se no ar sem local certo onde cair…pairando…Penso na notícia, pequena, que li, enquanto bebia um café apressado: «Mulher, 46 anos, casada, mãe, foi encontrada morta. A causa aparente é suicídio por comprimidos. Aguarda-se autópsia. No entanto, foi encontrado um pequeno papel escrito.»
Por vezes, as imagens das palavras agarram-se aos pensamentos. Parecem garras pegajosas. Podia lembrar-me de poemas, de peças de teatro…lembro-me da imagem de palavras e de frases publicitárias…bem, também de letras de canções. Algumas de gosto muito duvidoso! Quase todas de amor… dizemos amo-te a alguém esperando a mesma resposta: Amo-te. Nunca nos damos conta do tempo presente do que dissemos e do tempo, igualmente presente da resposta dita. As canções e o sentimento judaico-cristão, levam-nos a crer que está implícita a eternidade. Amamos como a Jesus, como a Deus (e eu sou ateia...). O amor como libertador e justificador de todos os erros. O amor como o álibi para todas as formas de desrespeito pelos outros. É falso. O Amor é uma tentativa de nos prolongarmos numa vida finita. Na partilha, nos momentos de empatia e comunhão de sensações, emoções, discursos, em que nos deixamos espontaneamente ir na espuma doce e salgada de vagas confusas, nos carinhos infantis em corpos de adulto partilhados. Mas até aí, cada qual tem o seu orgasmo...
Porque se terá suicidado aquela mulher? Porque terá, eventualmente, deixado uma nota? O que a levou deixar de envelhecer pacificamente, vendo o seu corpo alterar-se, a sua saúde debilitar-se, esperando. Porquê acabar uma viagem que podia ser adiada mais um pouco. Dias meses anos. Com dias de sol, manhãs de praia, pequenos-almoços sem tempo e hora marcada, café quente, espumoso, aromático...
Alguns alunos vão entregando as provas, que arrumo criteriosamente por ordem numérica e alfabética (quando coincidem…). Ainda faltam 30 minutos para o termo.
«Mulher, 46 anos, casada, mãe, foi encontrada morta. A causa aparente é suicídio por comprimidos. Aguarda-se autópsia. No entanto, foi encontrado um pequeno papel escrito...»
Tocou! A prova acabou. Os mais atrasados apressam-se a entregar as folhas da prova escrita.
Arrumo-as na pasta.
Afinal vou almoçar com os colegas.
Antes, vou despejar na sanita da casa de banho das professoras o frasco dos comprimidos.”

23 de Dezembro de 1976

"A minha mãe chamou-nos aos três. A mim a única filha, e seus dois filhos rapazes. Eu com 10 anos e meus irmãos Francisco, com 6 e Manel com 8 anos. Fomos ter com ela ao corredor de casa. Disse-nos com ar sério: "Cada um de vocês vais pôr dentro da sacola da escola três brinquedos e mais nada, está bem? Depressa, vá lá, depressa."
Olhámos uns para os outros sem perceber. Mas a voz e o ar com que a minha mãe disse aquilo, nem fez com que o Manel perguntasse nada. Fomos correndo para os nossos quartos fazer o que a minha mãe tinha dito. Eu guardei o Alexandre, um urso amarelo já muito gasto, uma boneca, a Maria, que era prenda mais ou menos nova, e a caminha da Maria.
Ouvi a minha mãe a chamar-nos novamente do corredor. Corri. Não sei o que os meus irmão guardaram, porque também apareceram no mesmo instante. A minha mãe tinha só a mala castanha que costumava usar, e a pasta da escola, onde guardava os livros e os trabalhos dos meninos dela. O meu pai não estava em casa ainda. Não era hora de chegar da Robialac, onde trabalhava.
"Vamos embora meninos", disse ela.
"Para onde mamã?", perguntei eu.
"Vamos ter com a avó Isabel"
A avó Isabel vive na metrópole. Não vive aqui, em Maputo. Vive em Lisboa.
Saímos de casa.
O meu pai, afinal, estava dentro do carro à porta de casa. Se calhar tinham feito as malas sem darmos por nada. Íamos de férias e era uma surpresa.
O meu pai conduziu até ao aeroporto. Estacionou o carro e saímos. Afinal não havia mais bagagem...
O aeroporto estava cheio de gente, que se empurrava e acotovelava. A minha mãe e o meu pai, agarravam-nos para não nos perdermos. O calor era imenso...os vidros estavam embaciados...todos escorriam suor...e o cheiro entranhava-se nas narinas, na roupa, nos cabelos...
O meu pai, um pouco mais à frente a segurar com mão firme o Francisco e o Manel, empurrava a multidão. A minha mãe, de mão dada comigo, seguia-o.
Finalmente, o meu pai conseguiu chegar ao balcão onde uma senhora gritava e gesticulava. Muita gente gritava e gesticulava com a senhora.
O meu pai mostrou bilhetes e documentos. Dois militares da Frelimo aproximaram-se. Leram demoradamente os documentos. Olharam muito para nós. Ao fim do que pareceram horas, rodeados de gente que empurrava, gritava e gesticulava, um deles disse ao meu pai: "Podes passar camarada, mais a tua família. Mas se vais, já não voltas e já sabes que não podes levar nada. Agora os teus bens são do partido." O meu pai acenou com a cabeça.
"Passem", disse o militar.
Passámos de mão dada e andar apressado. Mais à frente, voltámos a mostrar os papéis todos.
Finalmente entrámos no avião. Não havia lugares para ficarmos juntos. A minha mãe distribuiu-nos pelos lugares ainda vagos.
Pouco tempo depois levantávamos voo para casa da avó Isabel.
Afinal, não íamos de férias...