Na Páscoa

Lembro-me do cheiro da canela e da erva-doce dos bolos fintos da minha avó Joaquina. Levavam banha derretida. Eram amassados à mão. As mãos dela não tinham força.
- Rosinha, mexe para o mesmo lado...
Eu, de mangas arregaçadas, e sorriso matreiro respondia.
- Sim avó, esteja descansada. Olhando pelo "rabo do olho", apressava-me a mexer para o lado contrário. Era uma brincadeira, para provar a mim própria que ficava bem mesmo que eu mexesse para o lado errado.
Os bolos levavam também aguardente. Mas só um bocadinho. As meninas também comiam os bolos.
O verdadeiro truque, o insuperável segredo dos bolos fintos, era a cozedura em forno de lenha. Era sempre necessário negociar na padaria de Rua de Estevéns.
O tabuleiro lá ia. Tapado com um pano imaculado de linho. Eu levava-o. A minha avó seguia-me, apoiada na sua bengala. Devagarinho. Eu ia ao lado dela.
Por vezes olhava para baixo. As ruas de pedras irregulares. Escuras e escorregadias pelos muitos passos que as tinham polido. Via os pés da minha avó, deformados pelos joanetes da idade e se calhar dos diabetes. Os sapatos pretos de descanso. Os passinhos ritmados pela bengala.
- Rosinha não te distraias...olha que os bolos caem...
- Não avó, não caem...estou a segurar bem.
Nestas alturas os olhos azuis da minha avó, tão azuis como o céu no verão, olhavam para mim e riam. Ela sabia que eu não os deixaria cair. Eu adorava os bolos fintos dela...
A Páscoa.
Também tinhamos que ir ver o Senhor dos Passos da Igreja do Espírito Santo.
A minha avó não tinha medo dele. Até lhe segurava o vestido roxo. Eu tinha medo dele. Só ia porque ela dizia que "tinha muita fé naquele Jesus dos Passos". Rezava-lhe e eu ficava em silêncio a olhar para ela. O cabelo todo branco. Muito penteado para domar os caracóis rebeldes, em canudos, apanhado numa trança enrolada. Adorava ver o cabelo dela depois de lavado. Brilhava de brancura. Os caracóis que lhe chegavam a meio das costas. Neve farta a cair pelos ombros da minha avó.
Ficavamos sentadas num banco de madeira à espera que os bolos cozessem.
- Rosinha, tens fome? Queres alguma coisa?
- Não avó. Não quero nada.
Só queria estar ali, a sentir, lentamente o cheiro dos bolos cozidos a encher o ar. A ouvir a minha avó, a olhar para ela. Muito branquinha. Os olhos muito azuis. O sorriso maroto a olhar para mim de soslaio. O cheiro a lavado da roupa dela.
Os bolos fintos da Páscoa...