29 de Abril de 1974

"Os dias têm sido de esperança. Desde dia 25 de Abril.
Os prisioneiros políticos foram libertados. Os pides escondem-se ou desapareceram no ar. Os ricos compraram viagens para o Brasil ou atravessaram a fronteira espanhola. As herdades no Alentejo ficaram sem inquilinos nos grandes casarões escondidos da entrada a quilómetros da beira da estrada principal. Também se descobriram muitos monárquicos e coniventes com o regime que, afinal, andaram a esconder que eram comunistas e socialistas. Com sérias, honestas, reais preocupações sociais.
Nunca vi militares acarinhados pela população anónima. Agora é um lugar comum. Em contrapartida a polícia e a Guarda é odiada. A bem dizer nem interferem. passam despercebidos, rentes às paredes nos seus uniformes cinza e azul, como se fossem elementos da paisagem...
Viva o MFA, ou O Povo está com o MFA, devem ser as frases mais ouvidas no quotidiano.
O tratamento por tu e a pontuação feita por "pá" é uma novidade muito aproximativa em termos de sentimentos e comunhão de desejos por mais justiça, pão, habitação, saúde e educação....como na canção!
Proliferam todos os dias novos partidos e são tantas as siglas que se torna impossível fixá-las a todas sem a existência de um dicionário: PCP, PS, PPD, MDP/CDE, MES, PCTP-MRPP, MES, ASDI, UDP, LST, UEDS....sei lá...
Os militares querem acabar com o analfabetismo, vão lançar uma coisa que se chama PREC, processo revolucionário em curso, com acções de descentralização cultural. Os grupos de teatro que se multiplicam, vão às aldeias explicar a revolução. Actuam nos largos, em carros de bois, em atrelados de tractores agrícolas.
Todos sonhamos com o 1º de Maio que nunca pudemos celebrar. Vou levar a família toda para a rua. Quero estar presente no dia do trabalhador, que sempre fui. De cravo nas mão e de mão dada com as minhas filhas. Viva o 25 de Abril! Viva o 1º de Maio!

20 de Março de 1974

"Gostava de te poder contar tudo. Gostava que não me olhasses com estranheza e desconfiança. Sei que tenho agora comportamentos que desconheces, silêncios não partilháveis, omissões que tu ouves, mentiras que tu sabes de cor...estou a expor-nos a uma ruptura. Sofrida, dura. Estou a magoar-te. Vejo-te impotente a definhar de tristeza e inquietação. Sofro. Mas o que vi na guerra não é partilhável. Não consigo dizer-to. Não quero que o saibas. As dores, as insónias, o desconforto que carrego comigo, é o resultado de constantemente ver imagens insuportáveis. A minha própria imagem é insuportável. Sem nada saberes peço-te que compreendas que tenho que pôr fim a isto. A guerra tem que acabar. Essa é a amante de que tu tens suspeitado e que me impede de te olhar de frente com o amor que por ti sinto. Mas ainda não sinto todo, como era, como foi. Voltei diferente, apesar de ser o mesmo. Há coisas que não te posso contar. Que vou fazer. Que tenho que fazer. Com irmãos de armas. Vou para o Alentejo agora, às duas da madrugada. Não sei se volto. Lembra-te que sempre quisemos um país melhor."

18 de Março de 1974

"Queridos pais,
São três da madrugada. Estou algures, escondido numa casa de pedra, entre Almeida, o rio Côa e perto da fronteira espanhola. Somos quatro homens cansados, com medo e poupados em palavras. A Guarda vai-se fazendo ver e sentir. Nos cascos dos cavalos que passam. No modo encolhido como as pessoas andam. No nosso olhar desconfiado e atento. Estou a escrever à luz de um candeeiro a petróleo que cubro om uma manta, correndo o risco de atear fogo. Não quero partir sem me despedir de vós. Sem vos dizer que não posso, não quero, não devo, participar numa guerra sem razão. Será cobardia? Talvez. Será traição à Pátria? Talvez. Mas que Pátria é esta que em vez de ser mãe, nos oferece à morte, à miséria, à opressão? Os homens que estão comigo têm fome. Têm famílias com filhos e mulheres com fome. Não sabem ler nem escrever. São homens com rugas de velhos em rostos jovens. Olhos cansados em órbitas esbugalhadas pelo sofrimento. Mãos grossas, marcadas por trabalho duro, que tremem. Não posso ficar! Alguém dará esta carta à mãe durante a missa de domingo. O homem chegou. Vamos tentar a nossa sorte agora. A Guarda está perto.
Do vosso filho"

13 de Março de 1974

"- Tenho 19 anos. Chamo-me Maria Alice Pinto Nogueira. Estou no 2º ano de Germânicas na Universidade de Lisboa. Moro na Moita na rua Almirante Américo Tomás, nº 14. Sou filha única. Vivo com os meus pais e a minha avó materna.
- Sim, já sabemos, o que são as FAP?
- Força Aérea Portuguesa.
Levo mais um soco na cara. Sangro do nariz e da boca. Respiro e passo a língua pelo meu próprio sangue. Mantenho os braços cruzados sobre o peito. Tremo de frio e transpiro. Onde estará o Manel?
- Tens sentido de humor...ou então és parva! O que faz uma miúda tão gira com o alferes Manuel Salgado? Donde o conheces?
- É meu namorado.
- Ah já te levou para a cama..com uma cara dessas e afinal não és virgem...vais linda para o casamento...ninguém de juízo te vai pegar...metida com terroristas...és uma p...
Onde estará o Manel? O que lhe terão feito? Os meus pais como estarão? Não sabem de mim...sei lá há quantas horas aqui estou...O sol é amarelo, o céu é azul, o mar é verde e fresco...a Costa da Caparica...
Ouço risos.
- Querida, o que são as FAP?
- Força Aérea Portuguesa.
Mais um soco. Caio no chão frio abraçada ao meu peito. Bato com a cabeça. Levantam-me.
- Quanta vergonha para uma p... que anda enrolada com um terrorista.
Não aguento mais e urino-me. Estou nua em frente de três homens.
O sol é amarelo. O céu é azul. O mar é verde e fresco.

11 de Março de 1974

"Apesar de a Primavera já ter começado, o frio, pela manhã, ainda enregela...
Mesmo assim não falto. Vou sempre aos sábados de manhã com a ti Maria à Igreja. Quero acompanhá-la. Foi ela que me criou. É ela que me acorda todos os dias de manhã para ir para a escola. É ela que me faz o pequeno almoço na cozinha quente de lenha crepitante na grande lareira onde estão, perto, varas com as alheiras e os chouriços pendurados, pingando para o chão, para grandes folhas de jornal. A minha mãe ainda dorme. O meu pai, ou já saiu, ou ainda se arranja no andar de cima. Quando isto acontece, diz-me sempre: despache-se menina, assim ainda vai com o sr. doutor para a escola. Escusa bem de ir com o resto da canalha na carreira...
Eu gosto de ir com a canalha...
Gosto de ir com a ti Maria à Igreja. A ti Maria não sabe ler nem escrever. Mas sabe fazer contas e conhece o dinheiro todo. Anda sempre vestida de preto e com um avental às riscas cinzentas. Fininhas. Tem um bolso no meio do avental onde guarda...um lenço sempre branco e bem dobrado, ganchos para fixar, repuxada no alto da cabeça uma grossa trança grisalha e uma imagem de Nossa Sra da Assunção. Beija muitas vezes a santa e diz: ai valha-me Nossa Sra da Assunção!
Todos os sábados, lá vou eu de braço dado com a ti Maria à Igreja. O filho, o Joaquim,está na guerra. Acho que está em Angola. Eu costumo ler os aerogramas...depos de a minha mãe os ler em voz alta. A ti Maria pede-me muitas vezes para lhos ler...até os sabermos as duas de cor...O Joaquim também não sabe ler nem escrever, mas um furriel de Vila Real costuma escrever o que ele lhe dita para a ti Maria.
Aos sábados de manhã, lá vou eu à Igreja com a ti Maria. Gosto de ir. A Igreja não tem ninguém. Está sempre iluminada com o tremeluzir de velas. Cheira a cera derretida e as pernas, braços, cabeças, mãos, até dedos em cera, de tamanho natural, parecem iluminadas por dentro como lanternas...
Ajoelhamo-nos as duas em frente do altar de Nossa Sra da Assunção e rezamos. Um terço inteirinho, para o Joaquim voltar, perfeito e um homem como deve ser por estar a defender a nossa querida pátria. Murmuramos em uníssono. Nunca me distraío e de vez em quando, pelo rabo do olho, vejo uma lágrima a rolar, contornando as rugas da ti Maria.
Este sábado, saí mais cedo da Igreja. A ti Maria ficou a acender uma vela mais teimosa em agarrar o fogo da sua fé. A minha mãe estava à porta com um aerograma.
A ti Maria saíu e gritou.
Não voltei mais nenhum sábado.
Voltei um mês depois, vestida de preto, de braço dado com a ti Maria.

7 de Março de 1974

"Camarada,
Aceito o seu conselho, e, amanhã, junto-me aos outros.
Nada me prende mais.
O meu Januário não comunica em Peniche há mais de uma semana.
Ninguém me dá trabalho porque o meu homem está preso...
O meu mais velhinho, já está em Évora fazendo mandados numa farmácia. A minha gaiata está a servir em casa da madrinha. Os gaiatinhos mais novos...Ontem mandei-os a casa do manageiro pedir um bocadinho de pão. Penteei-os bem, iam bem lavadinhos, e como são muito bonitos...estão tão magrinhos...
Apesar do manageiro não ter conseguido levar-me para a cama, trouxeram pão, uma malguinha de azeite e um paninho com umas azeitonas. Comeram uma bela açorda e dormiram profundamente.
Amanhã, cedinho, levam-me a Évora com eles.
Vou deixá-los na Casa Pia.
Encontro-me depois com os camaradas na Graça do Divor.
J."

6 de Março de 1974

"Querida Luísa Espero que esta minha carta te vá encontrar de saúde, assim como à restante família. Eu estou bem, apesar do clima húmido e quente, na região de Pemba. Os dias têm passado...e ainda não tive nenhum ataque de paludismo. A dose de quinino e a água tónica que ainda vai havendo, parecem resolver o problema. De resto, vou jogando às cartas e cumprindo o melhor que posso, a defesa da nossa querida Pátria. Se tudo correr bem, talvez consiga passar uns dias, em Novembro, na metrópole. Talvez consiga finalmente apertar-te de novo nos meus braços. Ontem, estivemos a observar o vale onde está a aldeia dos turras. Têm muitas mulheres e crianças com eles. Corre um enorme rio ao lado da aldeia. Vemos as mulheres a lavar as capulanas e as crianças mais pequenas, amarradas às costas das mães, enquanto as maiorzinhas correm, brincam e chapinham na água do rio. Algumas mulheres, perto das palhotas pisam mandioca em grandes pilões de madeira. Há fogueiras acesas todo o dia. E toda a noite. Dançam e cantam à noite. Todos eles. Até as crianças e os velhos. Não vimos nada de especial. Uma aldeia de cubatas com gente a viver o dia a dia. O vale tem terra castanha escura. Fértil. Plantam e colhem. Milho, mandioca... Hoje vão lançar Napalm. Deste que te ama"

Revolução

Abril.

Primavera ou Revolução.

Portugal ou o mundo...

Como falar em Abril e Revolução, em vez de Abril e da Primavera?

Como falar em Revolução sem trazer o destino português da saudade à escrita, ou mesmo ao limite das palavras? Como falar em Revolução sem a ter como desejo, intenção, objectivo? Como falar em Revolução quando ela se transformou em facto histórico ficcionado? Como falar em Revolução em Portugal, quando ela é necessária no mundo e tem que começar na Revolução em cada um? Como falar em Revolução sem falar em Igualdade, Liberdade, Fraternidade? Como falar em Revolução sem a prática da Igualdade, Liberdade e Fraternidade? Como fazer a Revolução sem a queda das ilusões sobre a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade? Como fazer a Revolução neste mundo em que todos estamos tão ilusoriamente próximos e tão realmente controlados, observados, comandados, alienados num sonho de liberdade por comunicarmos...invisíveis, offline, com nicks e definições de privacidade. Como fazer a Revolução?

Este mês de Abril, é o mês da Revolução!

Tatuagem

Tenho tatuadas no meu corpo flores de cerejeira

Tenho marcados no meu corpo

sinais

manchas de despigmentação

sardas cor de Outono

salpicos de vermelho

e o tempo...

Tenho impregnado no meu corpo

o cheiro do medo

da força e do cansaço

da dor e da alegria

do tabaco e do perfume caro

do teu suor e sexo

Tenho memória no meu corpo

de dedos de mãos

de dentes de bocas

de saliva de línguas

de sussuros de palavras

de gritos de sémen

Em noites de Lua cheia e véspera de Lua nova