11 de Março de 1974

"Apesar de a Primavera já ter começado, o frio, pela manhã, ainda enregela...
Mesmo assim não falto. Vou sempre aos sábados de manhã com a ti Maria à Igreja. Quero acompanhá-la. Foi ela que me criou. É ela que me acorda todos os dias de manhã para ir para a escola. É ela que me faz o pequeno almoço na cozinha quente de lenha crepitante na grande lareira onde estão, perto, varas com as alheiras e os chouriços pendurados, pingando para o chão, para grandes folhas de jornal. A minha mãe ainda dorme. O meu pai, ou já saiu, ou ainda se arranja no andar de cima. Quando isto acontece, diz-me sempre: despache-se menina, assim ainda vai com o sr. doutor para a escola. Escusa bem de ir com o resto da canalha na carreira...
Eu gosto de ir com a canalha...
Gosto de ir com a ti Maria à Igreja. A ti Maria não sabe ler nem escrever. Mas sabe fazer contas e conhece o dinheiro todo. Anda sempre vestida de preto e com um avental às riscas cinzentas. Fininhas. Tem um bolso no meio do avental onde guarda...um lenço sempre branco e bem dobrado, ganchos para fixar, repuxada no alto da cabeça uma grossa trança grisalha e uma imagem de Nossa Sra da Assunção. Beija muitas vezes a santa e diz: ai valha-me Nossa Sra da Assunção!
Todos os sábados, lá vou eu de braço dado com a ti Maria à Igreja. O filho, o Joaquim,está na guerra. Acho que está em Angola. Eu costumo ler os aerogramas...depos de a minha mãe os ler em voz alta. A ti Maria pede-me muitas vezes para lhos ler...até os sabermos as duas de cor...O Joaquim também não sabe ler nem escrever, mas um furriel de Vila Real costuma escrever o que ele lhe dita para a ti Maria.
Aos sábados de manhã, lá vou eu à Igreja com a ti Maria. Gosto de ir. A Igreja não tem ninguém. Está sempre iluminada com o tremeluzir de velas. Cheira a cera derretida e as pernas, braços, cabeças, mãos, até dedos em cera, de tamanho natural, parecem iluminadas por dentro como lanternas...
Ajoelhamo-nos as duas em frente do altar de Nossa Sra da Assunção e rezamos. Um terço inteirinho, para o Joaquim voltar, perfeito e um homem como deve ser por estar a defender a nossa querida pátria. Murmuramos em uníssono. Nunca me distraío e de vez em quando, pelo rabo do olho, vejo uma lágrima a rolar, contornando as rugas da ti Maria.
Este sábado, saí mais cedo da Igreja. A ti Maria ficou a acender uma vela mais teimosa em agarrar o fogo da sua fé. A minha mãe estava à porta com um aerograma.
A ti Maria saíu e gritou.
Não voltei mais nenhum sábado.
Voltei um mês depois, vestida de preto, de braço dado com a ti Maria.

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