20 de Março de 1974

"Gostava de te poder contar tudo. Gostava que não me olhasses com estranheza e desconfiança. Sei que tenho agora comportamentos que desconheces, silêncios não partilháveis, omissões que tu ouves, mentiras que tu sabes de cor...estou a expor-nos a uma ruptura. Sofrida, dura. Estou a magoar-te. Vejo-te impotente a definhar de tristeza e inquietação. Sofro. Mas o que vi na guerra não é partilhável. Não consigo dizer-to. Não quero que o saibas. As dores, as insónias, o desconforto que carrego comigo, é o resultado de constantemente ver imagens insuportáveis. A minha própria imagem é insuportável. Sem nada saberes peço-te que compreendas que tenho que pôr fim a isto. A guerra tem que acabar. Essa é a amante de que tu tens suspeitado e que me impede de te olhar de frente com o amor que por ti sinto. Mas ainda não sinto todo, como era, como foi. Voltei diferente, apesar de ser o mesmo. Há coisas que não te posso contar. Que vou fazer. Que tenho que fazer. Com irmãos de armas. Vou para o Alentejo agora, às duas da madrugada. Não sei se volto. Lembra-te que sempre quisemos um país melhor."

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