28 de Outubro de 1975

"Há retornados por toda a parte! Até aqui, na província, há retornados. Há até um casal em que ele é branco, ela é preta, e têm dois filhos mulatos! Do mal, o menos, são só estes retornados que são assim aqui na vila. Pensando bem, acho que nunca tinha visto um preto aqui na vila. Eu nem sou racista, mas acho que o normal é cada um com os da sua raça.
Os retornados, além de terem manias esquisitas, também pedem fiado na mercearia. Há muita gente de cá que manda pôr na lista e depois paga no final do mês. Mas são de cá. A gente conhece-os. Os retornados não. Alguns até nasceram cá, ou os pais são de cá, mas foram-se embora porque quiseram...e agora levam o tempo a queixar-se a dizer que aquilo é que era bom e evoluído...que viviam muito melhor e que era tudo melhor...
Os retornados dizem aos nossos jovens que tinham coca-cola, que iam ao cinema e à praia todo o ano, que havia muitas festas...
Aqui temos coisas muito boas, por exemplo a Canada Dry, a Gasosa da Serra D'Ossa, e são produtos portugueses, feitos por portugueses.
Se aquilo era tão bom, porque não ficaram lá? Por causa da guerra? Que bela desculpa! Já havia guerra, mas como mandávamos os nossos rapazes para os defenderem dos pretos, estavam muito bem! Pudera!
Quantos dos nossos rapazes morreram lá? Quantos regressaram aleijados? Quantos andam para aí maluquinhos, que nem um foguete das festas de Nossa Sra podem ouvir que se deitam logo ao chão? Sim!
Angola é nossa! Moçambique é nosso! Mas como se costuma dizer, o que se pode esperar de portugueses de segunda?
O Presidente da Câmara até tem andado a arranjar casas e empregos aos retornados. E os nossos, os que cá ficaram e estão fartinhos de trabalhar a vida inteira, até deram os seus filhos para servir a Pátria?
Os retornados vieram roubar-nos os nossos empregos. Essa é que é a verdade. Para os retornados é só facilidades.
Os retornados, ainda por cima, nem falam português como deve ser, falam à preto. Dizem xuinga, maningue, kanimambo...
Estamos no mês de Outubro e os retornados andam com casacos vestidos. Como se estivesse frio...Devem vir é todos doentes, com aquelas doenças perigosas como a malária, o paludismo, a febre amarela...Mesmo assim deixam-nos entrar em Portugal.
Nunca houve droga em Portugal! Só quando os retornados vieram é que começou a haver. Não é por acaso, de certeza! Os retornados é que trouxeram a droga para Portugal.
Bem, alguns retornados, mas poucos, até são doutores e engenheiros, mas esses são diferentes. São retornados brancos, com estudos, com educação, com profissões importantes.
A minha filha, por acaso, anda agora a namoriscar um rapazito que veio de Angola...mas o pai é médico e a mãe é professora. É completamente diferente!!!

Rua Araújo


Rua Araújo - 27 de Junho de 1975

"O nosso amigo Joaquim, jornalista no "Diário de Notícias", foi buscar-me a casa às 2 da manhã. Vesti-me a correr porque a minha mãe me pediu e meio a tropeçar entre as malas e os caixotes de madeira, fechados no corredor, lá fui. Entrámos no carro e o Joaquim disse-me: "vamos buscar o teu pai!" Àquela hora? Nem tinha dado conta que ele não estava em casa. Afinal, no outro dia, quer dizer às 7 da manhã íamos apanhar o avião para a metrópole. Vinhamos para Lisboa. Que cidade deve ser...a capital....
Avançávamos por avenidas iluminadas com Jacarandás enormes nos passeios...notei que a iluminação não era tão forte como me lembrava dela no ano anterior, mas ainda assim, estavam luminosos, e eu, cheia de sono e sem perceber nada. O Joaquim acelerava. Disse-me: "não tenhas medo vamos para uma rua um bocadinho estranha mas não tenhas medo." Porque havia eu de ter medo? Sempre conheci o Joaquim, sempre foi amigo lá de casa juntamente com os seus pais, costumávamos ir a casa uns dos outros...e ia buscar o meu pai...
Parou o carro numa rua com muitos bares iluminados, pessoas às portas e ouvia-se música. "Olha," disse-me, "esta é a Rua Araújo. A rua dos bares e dos cabarets." Que raio de nome para uma rua tão animada, pensei!
Entrámos num bar. O Joaquim segurou-me a mão. Tive que habituar o meu olhar à escuridão. Só um semi círculo ao fundo estava iluminado. No centro da luz, uma mulher alta loira e muito bonita, em bikini de lantejoulas dançava. O Joaquim puxou-me em direcção ao bar onde homens sentados em bancos altos bebiam e olhavam o foco de luz.
O meu pai estava lá sentado. Viu-me e disse-me:"Olha a minha menina!" Abraçou-me e pediu uma coca cola para mim."Bebe e depois vamos para casa que já é tarde. O Joaquim leva-nos"
O meu pai cheirava a alcóol e a tabaco. Fomos de volta para casa quando acabei de beber a coca cola. Quando chegámos, a minha mãe estava a chorar. Vi a minha irmã a fchar-se no quarto dela. O meu pai perguntou-me:"Onde está o gato? Temos que o deixar ao vizinho, não o podemos levar". Fui buscar o gato e o meu pai levou-o ao vizinho.
O Joaquim levou-nos ao aeroporto. Nunca mais o vi. O meu pai dormiu até chegarmos à metropole.
E, afinal, Lisboa não era como eu tinha sonhado"